Marcelo Públio
Estamos em 2029, ela está sentada em frente ao monitor. Hesita um pouco, não sabe por onde começar. Finalmente o sonho dela parece estar bem próximo à se realizar. Assim como a grande maioria dos jovens de sua geração, ela almeja trabalhar ajudando pessoas. Por isso está ansiosa buscando uma vaga, entre milhares de candidatos do mundo, querendo trabalhar para a ONU. Ela quer também explorar todo seu potencial e tudo aquilo que aprendeu até agora: preocupação com o meio ambiente, domínio de algumas culturas e compreensão de diversos domínios das ciências humanas. Ela é consciente das injustiças sociais, e corrigir esse erro é o sonho de toda uma geração que se formou na década de 2020.
Na verdade, nesses últimos 10 anos, muita coisa mudou. O primeiro grande surto mundial da “severa síndrome respiratória aguda”[1] aconteceu na virada da década. Naquela época, houve inicialmente uma grande valorização das Ciências Técnicas e Tecnológicas em nível mundial. Foi a primeira vez na história da humanidade que todos os cientistas se uniram em prol de um objetivo comum: erradicar o vírus da face terrestre. A batalha já tinha começado timidamente em 2002, mas foi a partir de 2019 que ela tornou-se uma verdadeira “guerra contra o vírus”. Em 2021, como fruto desse esforço global, surgiu a primeira vacina para o Covid-19. Entretanto, no final de 2022, o vírus voltou com nova roupagem, o Covid-22. Foi então que a ciência percebeu que as armas dessa guerra não estavam somente na indústria petroquímica e farmacêutica, mas na inteligência artificial e na solidariedade humana. A humanidade teve então que aprender a conviver com o vírus mutante.
Em 2022, diversos grupos científicos espalhados pelo mundo desenvolvem um aplicativo capaz de medir a quantidade de glóbulos brancos no sangue (WBCA). Por solidariedade, eles criaram uma licença aberta para exploração mundial. À partir de 2025, todos gadgets eletrônicos são equipados com esse aplicativo. Em 2027, ele torna-se obrigatório em diversos países. Trata-se de um algoritmo que indica as sutis variações da pulsação quando a taxa de glóbulos brancos aumenta. Esse aplicativo entra em ação cada vez que se apoia o polegar para desbloquear o aparelho, indicando se a taxa de glóbulos brancos do indivíduo não se alterou desde o último desbloqueio. Em caso afirmativo, o aparelho emite um alerta e o indivíduo se propõe uma quarentena para verificar se não está infectado. Com estas medidas, desde 2024 a epidemia passou a ser controlada.
Se de um lado, as ciências tecnológicas e da saúde conheceram um imenso progresso nessa década, de outro lado a convivência com o vírus impuseram igualmente uma profunda mudança sobre as relações humanas. No Brasil, à partir do momento em que o pesquisador Atila Iamarino falou em 2020, no programa Roda Viva, que nada mais será como antes, todos colocaram a mão na consciência. Na verdade, ele mesmo representa a transformação do pesquisador científico ao longo dessa década. Nesse período, surgem os pesquisadores independentes, cujo talento não repousa somente em suas pesquisas, mas também no talento de traduzir termos complexos da ciência numa linguagem simples e acessível ao grande público. Ressurgem então os grandes divulgadores científicos cujo principal papel é aproximar a Ciência ao grande público.
Finalmente, os divulgadores científicos se estabeleceram como os grandes apaziguadores de uma população carente de informação e assediada constantemente pelas fake news do final da década de 2010. Por outro lado, ao longo da década seguinte, as relações interpessoais também mudaram. Por coincidência, ou não, as pessoas passaram cumprimentar-se como os asiáticos:[2] à um metro e meio diante da pessoa que deseja cumprimentar, ela baixa levemente o tronco pronunciando a palavra oi, olá ou bom dia (dependendo do nível do relacionamento) e em seguida mostra o celular desbloqueado indicando que sua taxa de glóbulos brancos não aumentou. Depois desta cerimônia, a conversa prossegue, sempre com máscaras, evitando o toque, e mantendo uma certa distância.
O tele-trabalho progrediu enormemente, assim como as aulas não presenciais. Somente algumas aulas de laboratório, que necessitam a presença física, continuam a reunir as pessoas, mas seguindo estritamente o protocolo acima. Os logaritmos de inteligência artificial identificam classes de indivíduos e sistemas apropriados de aprendizagem para cada perfil. O índice de aprendizagem aumentou, mas os professores tiveram que se adaptar à esse novo mundo, assim como os técnicos de futebol tiveram que se adaptar, à partir dos anos 2000, ao uso de estatísticas para treinar seus times.
O comércio também evoluiu, mais consciente, as pessoas procuram agora produtos locais, deslocam-se menos, usam menos os carros, produzem menos lixo. Assim, a natureza se recuperou rapidamente, temos dias mais azuis, mais pássaros cantando, menos poluição sonora. Os grandes varejistas se aproximaram dos pequenos produtores para ajudar na distribuição da produção. O agronegócio prospera à preços mais justos para todos: os produtores se favorecem, os distribuidores praticam preços justos e os consumidores estão satisfeitos e conscientes de seu papel no funcionamento de todo sistema. A quantidade de produtos químicos utilizado na produção diminuiu. A bicicleta tornou-se um meio de transporte mais seguro e saudável nas grandes cidades. Não há mais a mesma pressa de dez anos atrás. Passamos simplesmente à viver daquilo que é essencial: saúde, bem-estar, felicidade.
Finalmente, alguns governos e poderes dominantes se aproveitaram da situação inicial do Covid para controlar dados sobre suas populações e dessa forma exercer seu poder sobre pequenos grupos mais oprimidos. Entretanto, a nova juventude que se formou ao longo da década de 2020, conscientes de seu papel na sociedade, se manifestam para equilibrar o poder da informação à favor do bem-estar social.
Esta foi a motivação da menina do início dessa carta. Ela sonha em poder oferecer um mundo mais justo para todos.
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