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Uma Reflexão pessoal na Quarentena (Epson Carvalho)

Atualizado: 11 de mai. de 2020

(Carta do Professor Epson Carvalho ao Professor Predebon para ser publicada.)

Epson Carvalho

Caríssimo amigo. Saudações!

Espero que essa carta o alcance bem de saúde, a considerar esses tempos sombrios, com especial perigo a nós, com mais de seis décadas de estadia no planeta.

Meu amigo, confesso que tentei. Sentei por diversas vezes à frente do computador, ponderando a respeito do tema que combinamos. Cheguei a escrever alguma coisa, mas nada que me satisfizesse, então capitulei. Por mais que eu pensasse em uma mensagem minimamente otimista para o futuro pós-pandemia, tudo me soou falso.

No fundo, não acho que haja ou haverá algo substantivo que mereça nosso entusiasmo. Tudo será mantido, os bons continuarão se indignando, os maus continuarão convictos e a maioria restante continuará sendo o que sempre foi, às vezes indiferente, às vezes oscilando daqui para lá, ao sabor das forças supervenientes, como fumaça submissa aos ventos.

Falando em vento, mudanças sem dúvida ocorrerão. Radicais? Não creio. Constantes, imperceptíveis e de longo alcance? Provavelmente. De tendência benéfica ou deletéria? Não sei. Muito relativo isso...

Pensei em comentar sobre como a tecnologia da informação avançará um pouco mais, pressionada pelas urgentes necessidades, mas tudo isso já está marcado como uma tendência inexorável. Poderia eu então falar sobre os cuidados e as atenções devidas ao desenvolvimento dos padrões éticos sobre a privacidade, transparência e disseminação das informações entre os Estados globais, mas tudo isso já é posto, discutido e em parte praticado. Tema para especialistas, acadêmicos e políticos melhor preparados. Minha colaboração seria como regar sobre um rio. Não acrescentaria grande coisa.

No final do mês de março deste ano, no real início da epidemia, li um artigo no Uol, que tratava do desenvolvimento de testes rápidos para detecção de contágio pelo coronavírus. O texto dizia que a Unicamp e a USP haviam formado uma parceria onde, por meio da microbiologia aliada a inteligência artificial, os cientistas poderiam realizar a análise do padrão de moléculas encontrado em fluidos corporais. Este método permitiria diagnosticar a doença de forma rápida e barata (50% do custo dos testes rápidos importados).

Também li, em outra fonte, uma notícia de que a IA estava ajudando pessoas a encontrar o par romântico perfeito, com o depoimento entusiasmado da Sra. Y, relatando sua felicidade atual, após o segundo divórcio.

Há alguns meses atrás fui almoçar com um amigo que usou seu GPS durante todo o trajeto (a pé) até o restaurante, que ficava na rua de trás.

Implicações nobres, questionáveis e desnecessárias da tecnologia continuarão coexistindo na dinâmica da oferta e da demanda. Há algo de errado aqui...

Ainda nessa seara, conheci recentemente o livro “Exposed – Desire and Disobedience in the Digital Age” do cientista político norte-americano Bernard E. Harcourt, do qual destaco uma frase: “os algoritmos podem influenciar nosso julgamento, moldá-lo e direcioná-lo. Eles exercem refinadas manipulações em nossa subjetividade”. Também considerei curiosa a atualização que Harcourt faz a Étienne de La Boétie (Discurso sobre a Servidão Voluntária), dizendo que vivemos hoje a era da servidão voluntária, onde nós seríamos vítimas voluntárias, pois não é sob pressão que somos vigiados, mas pela nossa própria vontade. Uma referência às informações pessoais que fornecemos candidamente à rede social, ao governo, às empresas, etc. De fato, fiquei arrepiado de espanto ao ver o nível de sofisticação e controle que vários países realizam na identificação dos cidadãos, a exemplo do sistema de reconhecimento facial que a China está implantando. Certamente a pandemia será um argumento irresistível para os países intensificarem o uso dessas tecnologias. Quanto aos objetivos, sempre existirão os nobres, os questionáveis e os desnecessários.

Quando você puder, leia esse livro. O meu está emprestado, mas assim que o devolverem eu te aviso, ok?

Ultimamente ando muito preocupado com os empregos. Não para mim, que já trilhei a maior parte do caminho, penso mais nos meus filhos. A escassez, a precarização, o verdadeiro assédio e abuso de autoridade, e o pior, o adoecimento das pessoas nessas relações tão assimétricas e despropositadas. Tenho me informado o quanto posso a este respeito, mas nada ainda me tranquilizou. O que você pensa a respeito? Me diga. Sabemos que após a pandemia a situação piorará. Será que emergirá uma nova ordem?

É....tenho visto alguma coisa nesse sentido. Por exemplo, o brilhante filósofo, antropólogo e sociólogo contemporâneo Bruno Latour, propôs em um pequeno artigo, reproduzido no site https:\\climainfo.org.br, que as pessoas favoráveis à redução das emissões dos gases do efeito estufa e, portanto, conscientes da ameaça climática, poderiam aproveitar essa paralisação global para selecionar quais atividades econômicas são positivas a essa causa e incentivá-las, ao mesmo tempo rejeitar aquelas que contribuem negativamente com a mudança climática. É curiosa a analogia que ele faz entre a pandemia e as centenas de milhões de pessoas-talvez bilhões- favoráveis à conservação do planeta. Se esse vírus (que nem chega a ser unicelular) conseguiu praticamente parar o sistema econômico mundial, algo que os adeptos da produção globalizada argumentavam ser impossível, por que todas essas pessoas não poderiam fazer o mesmo?

Dito assim, pode parecer utópico, mas tenho testemunhado uma alteração nas atitudes das pessoas no sentido da formação de novos hábitos e comportamentos mais saudáveis em relação ao meio ambiente. Acredito que esta tendência é bem consistente. Acho que com o tempo os bons resultados aparecerão.

Tempo. Essa é a melhor parte da quarentena. O maior dos recursos nos é oferecido pelas circunstâncias, mesmo que a um preço altíssimo, e, por isso mesmo, seria inadmissível desperdiçá-lo. O melhor uso que poderíamos dar a ele é o exercício da reflexão. Que excelente oportunidade!

Veja só, segundo o Michaelis, os significados do verbo refletir vão desde “fazer retroceder; fazer voltar em outra direção”, e “produzir efeito sobre; afetar”, até o significado mais conhecido “pensar com calma e ponderação”. Minha interpretação é de que tal pensamento equilibrado e profundo sobre nós mesmos permite mudar a direção para um destino melhor.

Modernas pedras e calhaus em nosso caminho como as pós-verdades, as “fake-news” e irritantes pensamentos egoicos que assolam nosso cotidiano, pensamentos tóxicos que produzem ódio, sofrimento, preconceito, xenofobia, indiferença e outras tantas doenças poderiam ser postos sob um civilizado controle por meio da massiva prática da reflexão, esta seria a melhor vacina contra extremismos. Acho que a nós, caro amigo, como professores, caberia essa missão, naturalmente como sempre coube, ajudar as pessoas a refletirem.

Por sorte a Ciência está sendo reabilitada por conta da pandemia, e então, o exercício da reflexão poderá com tranquilidade repousar sobre um terreno mais firme. Muito embora sujeita a falhas, a Ciência é o instrumento mais confiável que a humanidade dispõe para refutar as más escolhas.

Se aproveitássemos esse tempo adicional que hoje temos para refletir profundamente sobre o que queremos de nós e para nós, do mundo e para o mundo, conduzidos pela verdade, com o respaldo da Ciência, possivelmente, caro amigo, o chamamento do Dr. Latour não seria tão utópico assim. Não é mesmo?

Olhe só! Agora me dei conta que fiz um exercício reflexivo ao escrever essa carta a você. Comecei-a bem cético e desaminado, mas à medida nossa conversa progrediu, fui tornando-me mais otimista. Fico feliz por isso.

Que bom falar com você, meu amigo. Também foi bom ter trocado o twitter pela carta. Farei isso mais vezes.

Um abraço forte e fique em paz!


Epson Carvalho

Abril 2020

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